O Mulher Manifesto tem hoje, o prazer de contar um pouco da trajetória de uma mulher forte, decidida e que faz a diferença através de sua atuação na sociedade. Ela tem tudo para estar no roll das grandes cantoras brasileiras. Aos 22 anos, bonita, estilosa, dona de uma voz doce e melódica e cheia de talento, Jessica Souto chama atenção por onde passa. Cantora e compositora, começou fazendo músicas românticas e cheias de sentimento, dignas de musas da MPB.
Moradora
do Complexo do Alemão, dona de uma personalidade crítica, Jessica Souto se
inquietava com a realidade ao seu redor e exposta nas páginas dos jornais: com o
descaso, com as desigualdades sociais, a violência e a inércia do poder público com a
população menos favorecida. Então, nesse contexto, a carreira da musicista sofre
uma reviravolta. Ela faz uma escolha. Não quer ser mais um rostinho bonito na
mídia, nem apenas mais um produto comercial. Ela quer ir além, quer impactar
pessoas, trazer à tona a realidade da favela através da música. Com um violão
na mão e o microfone ligado, a doce Jessica, que antes cantava o amor romântico,
torna-se dura questionadora do sistema político e dá um tapa na cara da inércia
social a que a maioria das pessoas é submetida.
E foi
assim, com o propósito de debater os problemas sociais no Alemão, que vários
artistas da comunidade, com a mesma personalidade questionadora da cantora, se
uniam em encontros que além dos debates, culminavam em apresentações artísticas,
dando, assim, vida a um grupo denominado O SOM DO BARRACO, do qual Jessica é
uma das vocalistas e compositoras. O Grupo, recentemente foi premiado em um
concurso cultural, o PRÊMIO BRASIL
CRIATIVO, com o Projeto #Kombi55.
Por onde passa, o Som do Barraco leva, além de cultura e um ótimo som,
conscientização social. As músicas trazem uma energia diferente à plateia. Assisti
a uma apresentação recente, no evento Circulando, que aconteceu no Complexo, e
posso afirmar que é impossível sair imune a essa dose extra de reflexão a que
somos elevados assistindo a apresentação da galera do SOM. Vale a pena conhecer
e assistir.
Jessica
concedeu à coluna uma entrevista exclusiva, contando sobre a sua trajetória
profissional, falando do Som, do projeto premiado e de planos para o futuro na
carreira. Enquanto lê à entrevista, dê o play e conheça o trabalho da galera do
Complexo. Confira:
Jessica, quando e como começa sua
história com a música?
De uma certa forma minha história
com a música começou quando meu pai trouxe o primeiro violão pra casa. Eu tinha
uns 16 anos eu acho. Era um violão muito antigo e ruim. Rs. Eu comecei a fazer
um curso em uma igreja mas achava muito difícil. Logo eu estava fazendo para
agradar meu pai. Pouco mais de 2 meses de aula e eu abandonei o curso e fiquei
cerca de um ano sem tocar no violão. Depois desse prazo de um ano, quase que
por encanto eu resolvi pegar o violão e tentar aprender a tocar minhas músicas
favoritas. Daí eu ia na Internet e olhava as cifras e tentava tocar da maneira
mais simples. Daí aprendendo os acordes básicos surgiram as primeiras
composições.
O que a Jessica Souto ouve no
dia-a-dia?
Ultimamente Jessica Souto está ouvindo muito as músicas que as vizinhas
põem, Kkk. Falando sério, faz um tempo que tô me observando e tentando quebrar
meu preconceito quanto aos estilos musicais. Tenho tentado ouvir um pouco de
tudo. Isso inclui o funk, o sertanejo entre outros. Porém tenho focado mais no
rap e hip-hop por que tô numa fase mais analítica, tô fazendo músicas
conceituais, sobre a comunidade, sobre a sociedade e acho que esses estilos são
muito ricos. Até por que não dá para dizer o que é bom e o que é ruim
sem antes provar de tudo.
Você tem uma voz doce e melódica e já
compôs músicas românticas no início da carreira. Como se deu essa transição para
a artista se tornar a dura questionadora do meio social em que vive?
Confesso que essa transição foi uma grande surpresa até pra mim. Eu
nunca fui uma pessoa muito expressiva, tinha uma certa dificuldade pra falar de
sentimentos e coisas do tipo, e a música foi a maneira ideal de falar o que eu
sentia, e como eu sentia. Mesmo achando minhas composições muito simples, cada
uma das letras tem um significado grande pra mim. Então eu só me via dessa
forma, fazendo minhas músicas românticas e doces, até que um belo dia vi uma
matéria no jornal que mexeu tanto comigo que fui para o quarto e peguei o
violão e fiz uma música em pouco mais de 5 minutos. Que foi a música FINAL
FELIZ, minha primeira composição mostrando meu olhar sobre a sociedade. Fiquei
espantada ao reler a letra no instante seguinte. Porém foi uma sensação
maravilhosa quando a primeira pessoa que ouviu falou assim "me arrepiei.
É realmente para parar e pensar..." Dali em diante descobri uma outra
coisa que eu gostava muito, que era fazer as pessoas se questionarem, dialogar,
debater... Acho que aí eu descobri esse outro lado da música.
Enquanto moradora de uma comunidade
carioca "pacificada", essas críticas ao sistema governamental, e até mesmo à
própria realidade da favela já lhe renderam alguma represália?
Ah, já. Já fui impedida de apresentar músicas críticas em eventos dentro
da própria comunidade, já tive a apresentação reduzida por isso. De uma certa
forma, temo represálias mais serias por parte do sistema sim. Más como sempre
digo não tenho nada a perder, no máximo posso deixar um bom exemplo a ser
seguido. Desse mundo não vou levar nada, mas quero deixar algo de bom.
Vamos falar de Som do Barraco. Como
você conheceu e se integrou ao grupo?
O Som do Barraco surgiu a partir do encontro de alguns músicos do
complexo do Alemão que acontecia semanalmente no Barraco#55 pra criação de
diálogo, discussões sobre a sociedade e a comunidade entre tantos outros
assuntos. Daí começamos a fazer um som durante esses encontros, e cada um
começou a mostrar sua visão da sociedade através de músicas. O Som do Barraco
começou inicialmente com Eddu Grau (Cantor
e Compositor), Alan Eduardo (Al Neg
- Rapper, Compositor), André Valle (Multi
instrumentista e compositor) e eu que canto e arranho um pouco no violão. Mas a
nossa ideia ao batizar o projeto era de formar um coletivo cultural. Unir não
só a galera da música, mais a galera das artes plásticas, dança, dentre tantas
outras artes existentes na comunidade. Queríamos um coletivo cultural que
mostrasse além dos estereótipos convencionais da favela. É claro que com
todos nós tendo uma história com a música, acabou se firmando o Som do
Barraco no meio musical mesmo. Hoje nós que começamos o projeto mais os músicos
Léo Silva (Baterista) e Dan Joseph (Contrabaixista) somos a base do Som do
Barraco. Más mantemos a ideia inicial recebendo participações artísticas em
nossas apresentações. Quase sempre temos um artista convidado. O último foi o
inglês Henry Staples que faz uma participação com seu banjo em algumas de
nossas músicas. Estamos abertos a sugestões. Principalmente daqueles que
encontram na arte as ferramentas para lutar diariamente.
O Som do Barraco é um grupo que expõe
e questiona problemas sociais, especialmente os vividos na comunidade de
origem, o Complexo do Alemão, postura profissional que casa com a sua. A
Jéssica Souto se redefiniu a partir da integração no grupo?
Eu não diria redefinir e sim
aprimorar. Eu sempre fui uma pessoa mente aberta. Estou sempre pronta a tentar
entender o outro lado. O meu ingresso nesse grupo ajudou a aprimorar
principalmente a minha visão da sociedade como um todo. Posso dizer que foi um
despertar de vez para o mundo. Abrir os olhos e ver com um pouco mais de
clareza o que acontece ao meu redor.
Talvez hoje eu seja um pouco mais firme nas minhas colocações e tenha mais argumentos para defender meus ideais. Mas se tem algo que tenho aprendido com essa galera é que o saber ouvir e saber enxergar é a base de tudo. E isso tem dado certo tanto no lado profissional quanto no pessoal.
Talvez hoje eu seja um pouco mais firme nas minhas colocações e tenha mais argumentos para defender meus ideais. Mas se tem algo que tenho aprendido com essa galera é que o saber ouvir e saber enxergar é a base de tudo. E isso tem dado certo tanto no lado profissional quanto no pessoal.
O Som tem um projeto, que acaba de
ser premiado, que é o Kombi#55. Explique pra nós o que é esse projeto?
A gente sempre vê as as grandes organizações e o próprio governo
empurrando projetos goela a baixo nas comunidades, sem se darem conta do quanto
a comunidade tem a oferecer. A kombi#55 surgiu com a ideia de levar a arte que
já existe dentro da comunidade para outros lugares. Sejam outras comunidades, o
centro do rio ou a zona sul, enfim. É uma exposição itinerante que roda o
RJ expondo nossa arte. Atualmente estamos com uma exposição fotográfica que
mostra um pouco da visão dos moradores no seu roteiro cotidiano. Tem muita
gente que nunca entrou numa favela, muitas sequer entraram numa kombi. A ideia é fazer
com que as pessoas vejam a comunidade pelas janelas da kombi, só que pela
perspectiva do morador. Estamos abertos aos artistas que quiserem expor seus
trabalhos na Kombi#55.
Qual a importância de um prêmio como
o do "Brasil Criativo" para o projeto, e o que isso acarreta de
mudanças no futuro do grupo?
É muito importante por sermos um projeto tão pequeno que está
surgindo em meio aos gigantes. Um título de projeto criativo brasileiro nos dá
mais força e credibilidade, e também nos faz acreditar que estamos no caminho
certo. Ele acaba valorizando consequentemente o Som do Barraco por que ambos
são extensões do Barraco#55 e pode ser que futuramente os integrantes do som do
barraco mudem, ou não, o caso é que como eu disse somos um coletivo, mas o
legado alcançado vai eternizar esse trabalho independente das pessoas que
estiverem conosco.
Sabemos que o Som do Barraco já
deixou de estar apenas nos limites do Complexo do Alemão e se apresenta em
outros locais. Existem projetos para apresentações em toda cidade? Quais são os
planos para o futuro?
Estamos tentando levar cada vez mais o Som do Barraco pra fora da
comunidade. Não estou falando em retirá-lo do morro, mas sim em
compartilhá-lo com o resto da cidade e quem sabe, num futuro não muito distante,
estarmos por todo o Brasil. Parece ser um sonho grande demais, mas o som não pode
parar por aqui, e nossa mensagem muito menos.
O Barraco não vive só de som, também vive de sonhos, projetos e de muito trabalho para fazer as coisas acontecerem. Aos poucos estamos vendo os resultados.
O Barraco não vive só de som, também vive de sonhos, projetos e de muito trabalho para fazer as coisas acontecerem. Aos poucos estamos vendo os resultados.
Você é a única
menina da banda? Como é o relacionamento com os meninos? Já sofreu algum
preconceito?
O fato de eu ser a única menina no grupo não é bem
verdade, por que tem a Ellen Sluis que embora não cante com a gente, é parte
fundamental da organização como todos nós. Más o fato de eu ser a única menina
no palco nunca foi um problema. Muito pelo contrário. As vezes acabo sendo
mimada por isso, rsrs. A relação com os meninos sempre foi muito boa, estamos
sempre nos encontrando independe de ensaios, para colocar assuntos em dia,
discutir ideias. Jamais me senti tratada de maneira indiferente. Somos
praticamente uma família.
Você considera importante as mulheres
se engajarem socialmente de alguma forma?
Sim, claro! Por muito tempo as mulheres foram tratadas como objetos,
não tinham direito de nada que não fosse permitido por seus pais ou esposo.
Muitas coisas básicas nos foram negadas ao longo da história. Embora muitos
digam que alcançamos os tais dos direitos iguais, eu vejo que ainda estamos
muito atrasados. Ainda vejo mulheres recebendo salário menor que homens, sendo
julgadas por atitudes que se relacionada aos homens seriam tratadas como
normal. Acho que se as mulheres não se empenharem em mostrar do que são capazes
certamente ninguém vai fazer o menor esforço para provar o contrário, até por
que nosso sistema é preconceituoso, e esse preconceito já está enraizado nas
famílias. Vou dar um exemplo. É muito comum (muito mesmo) ver as meninas tendo
como primeiro brinquedo as bonecas, joguinho de cozinha, ferro de passar... E
se a menina diz que quer um carrinho ou qualquer outro brinquedo, os pais
dizem, "você tem que brincar com coisas de menina." Então eu
pergunto, como vamos acabar com o preconceito e essa desigualdade se desde cedo
ensinamos nossos filhos da maneira errada? Acho que as mulheres deveriam ser
mais conscientes com relação ao seu real papel na sociedade.
Qual o sonho e os planos concretos da
Jessica Souto na carreira?
Eu já conquistei muita coisa até aqui. Claro que sempre apoiada e com
muita ajuda. Digo eu, por que minhas conquistas pessoais tem um peso maior do
que as conquistas profissionais. Hoje eu to me dedicando ao som do barraco, e
meu atual objetivo é quebrar os estereótipos da favela e mostrar que somos
maiores que a dificuldade, desigualdade e o preconceito que sofremos. E o sonho
é esse, expandir, levar não só conscientização, mas também mensagens de dia
melhores. É ver o trabalho crescer e se orgulhar por ser parte dele.
Deixe seu recado para os fãs da
Jessica e do Som do Barraco.
A Jéssica não tem fãs não. Ela tem os melhores amigos que alguém
poderia ter, rs. Quanto ao Som do Barraco eu só tenho a agradecer, tanto aos
amigos, como as pessoas que tem acreditado nesse trabalho. O que posso dizer é
que só fazemos isso por vocês. Que enquanto houver uma pessoa que acredita e
que capta nossa mensagem então nós estaremos aqui com o maior orgulho do mundo.
A propósito queria fazer um agradecimento especial aos novos integrantes
Dan Joseph e Léo Silva, por que os moleques são bons pra caramba e simplesmente
entraram de cabeça, mesmo sabendo que o retorno financeiro é quase nenhum, o
amor a música e o respeito a comunidade foi maior. Um Salve pra vocês!
Para quem quiser mais informações sobre o trabalho do grupo O Som do Barraco e de Jessica Souto, basta curtir a fanpage: para curtir a página, clique aqui.