segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

MULHER MANIFESTO: Jessica Souto e o Som do Barraco


O Mulher Manifesto tem hoje, o prazer de contar um pouco da trajetória de uma mulher forte, decidida e que faz a diferença através de sua atuação na sociedade. Ela tem tudo para estar no roll das grandes cantoras brasileiras. Aos 22 anos, bonita, estilosa, dona de uma voz doce e melódica e cheia de talento, Jessica Souto chama atenção por onde passa.  Cantora e compositora, começou fazendo músicas românticas e cheias de sentimento, dignas de musas da MPB.

Moradora do Complexo do Alemão, dona de uma personalidade crítica, Jessica Souto se inquietava com a realidade ao seu redor e exposta nas páginas dos jornais: com o descaso, com as desigualdades sociais, a violência e a inércia do poder público com a população menos favorecida. Então, nesse contexto, a carreira da musicista sofre uma reviravolta. Ela faz uma escolha. Não quer ser mais um rostinho bonito na mídia, nem apenas mais um produto comercial. Ela quer ir além, quer impactar pessoas, trazer à tona a realidade da favela através da música. Com um violão na mão e o microfone ligado, a doce Jessica, que antes cantava o amor romântico, torna-se dura questionadora do sistema político e dá um tapa na cara da inércia social a que a maioria das pessoas é submetida.

E foi assim, com o propósito de debater os problemas sociais no Alemão, que vários artistas da comunidade, com a mesma personalidade questionadora da cantora, se uniam em encontros que além dos debates, culminavam em apresentações artísticas, dando, assim, vida a um grupo denominado O SOM DO BARRACO, do qual Jessica é uma das vocalistas e compositoras. O Grupo, recentemente foi premiado em um concurso cultural, o PRÊMIO BRASIL CRIATIVO, com o Projeto #Kombi55





Por onde passa, o Som do Barraco leva, além de cultura e um ótimo som, conscientização social. As músicas trazem uma energia diferente à plateia. Assisti a uma apresentação recente, no evento Circulando, que aconteceu no Complexo, e posso afirmar que é impossível sair imune a essa dose extra de reflexão a que somos elevados assistindo a apresentação da galera do SOM. Vale a pena conhecer e assistir.
Jessica concedeu à coluna uma entrevista exclusiva, contando sobre a sua trajetória profissional, falando do Som, do projeto premiado e de planos para o futuro na carreira. Enquanto lê à entrevista, dê o play e conheça o trabalho da galera do Complexo. Confira:



Jessica, quando e como começa sua história com a música?

 De uma certa forma minha história com a música começou quando meu pai trouxe o primeiro violão pra casa. Eu tinha uns 16 anos eu acho. Era um violão muito antigo e ruim. Rs. Eu comecei a fazer um curso em uma igreja mas achava muito difícil. Logo eu estava fazendo para agradar meu pai. Pouco mais de 2 meses de aula e eu abandonei o curso e fiquei cerca de um ano sem tocar no violão. Depois desse prazo de um ano, quase que por encanto eu resolvi pegar o violão e tentar aprender a tocar minhas músicas favoritas. Daí eu ia na Internet e olhava as cifras e tentava tocar da maneira mais simples. Daí aprendendo os acordes básicos surgiram as primeiras composições.

O que a Jessica Souto ouve no dia-a-dia?

Ultimamente Jessica Souto está ouvindo muito as músicas que as vizinhas põem, Kkk. Falando sério, faz um tempo que tô me observando e tentando quebrar meu preconceito quanto aos estilos musicais. Tenho tentado ouvir um pouco de tudo. Isso inclui o funk, o sertanejo entre outros. Porém tenho focado mais no rap e hip-hop por que tô numa fase mais analítica, tô fazendo músicas conceituais, sobre a comunidade, sobre a sociedade e acho que esses estilos são muito ricos. Até por que não dá para dizer o que é bom e o que é ruim sem antes provar de tudo.

Você tem uma voz doce e melódica e já compôs músicas românticas no início da carreira. Como se deu essa transição para a artista se tornar a dura questionadora do meio social em que vive?

Confesso que essa transição foi uma grande surpresa até pra mim. Eu nunca fui uma pessoa muito expressiva, tinha uma certa dificuldade pra falar de sentimentos e coisas do tipo, e a música foi a maneira ideal de falar o que eu sentia, e como eu sentia. Mesmo achando minhas composições muito simples, cada uma das letras tem um significado grande pra mim. Então eu só me via dessa forma, fazendo minhas músicas românticas e doces, até que um belo dia vi uma matéria no jornal que mexeu tanto comigo que fui para o quarto e peguei o violão e fiz uma música em pouco mais de 5 minutos. Que foi a música FINAL FELIZ, minha primeira composição mostrando meu olhar sobre a sociedade. Fiquei espantada ao reler a letra no instante seguinte. Porém foi uma sensação maravilhosa quando a primeira pessoa que ouviu falou assim "me arrepiei. É realmente para parar e pensar..." Dali em diante descobri uma outra coisa que eu gostava muito, que era fazer as pessoas se questionarem, dialogar, debater... Acho que aí eu descobri esse outro lado da música.

Enquanto moradora de uma comunidade carioca "pacificada", essas críticas ao sistema governamental, e até mesmo à própria realidade da favela já lhe renderam alguma represália?

Ah, já. Já fui impedida de apresentar músicas críticas em eventos dentro da própria comunidade, já tive a apresentação reduzida por isso. De uma certa forma, temo represálias mais serias por parte do sistema sim. Más como sempre digo não tenho nada a perder, no máximo posso deixar um bom exemplo a ser seguido. Desse mundo não vou levar nada, mas quero deixar algo de bom.

Vamos falar de Som do Barraco. Como você conheceu e se integrou ao grupo?

O Som do Barraco surgiu a partir do encontro de alguns músicos do complexo do Alemão que acontecia semanalmente no Barraco#55 pra criação de diálogo, discussões sobre a sociedade e a comunidade entre tantos outros assuntos. Daí começamos a fazer um som durante esses encontros, e cada um começou a mostrar sua visão da sociedade através de músicas. O Som do Barraco começou inicialmente com Eddu Grau (Cantor e Compositor), Alan Eduardo (Al Neg - Rapper, Compositor), André Valle (Multi instrumentista e compositor) e eu que canto e arranho um pouco no violão. Mas a nossa ideia ao batizar o projeto era de formar um coletivo cultural. Unir não só a galera da música, mais a galera das artes plásticas, dança, dentre tantas outras artes existentes na comunidade. Queríamos um coletivo cultural que mostrasse além dos estereótipos convencionais da favela. É claro que com todos nós tendo uma história com a música, acabou se firmando o Som do Barraco no meio musical mesmo. Hoje nós que começamos o projeto mais os músicos Léo Silva (Baterista) e Dan Joseph (Contrabaixista) somos a base do Som do Barraco. Más mantemos a ideia inicial recebendo participações artísticas em nossas apresentações. Quase sempre temos um artista convidado. O último foi o inglês Henry Staples que faz uma participação com seu banjo em algumas de nossas músicas. Estamos abertos a sugestões. Principalmente daqueles que encontram na arte as ferramentas para lutar diariamente.

O Som do Barraco é um grupo que expõe e questiona problemas sociais, especialmente os vividos na comunidade de origem, o Complexo do Alemão, postura profissional que casa com a sua. A Jéssica Souto se redefiniu a partir da integração no grupo?

 Eu não diria redefinir e sim aprimorar. Eu sempre fui uma pessoa mente aberta. Estou sempre pronta a tentar entender o outro lado. O meu ingresso nesse grupo ajudou a aprimorar principalmente a minha visão da sociedade como um todo. Posso dizer que foi um despertar de vez para o mundo. Abrir os olhos e ver com um pouco mais de clareza o que acontece ao meu redor.
Talvez hoje eu seja um pouco mais firme nas minhas colocações e tenha mais argumentos para defender meus ideais. Mas se tem algo que tenho aprendido com essa galera é que o saber ouvir e saber enxergar é a base de tudo. E isso tem dado certo tanto no lado profissional quanto no pessoal.

O Som tem um projeto, que acaba de ser premiado, que é o Kombi#55. Explique pra nós o que é esse projeto?

A gente sempre vê as as grandes organizações e o próprio governo empurrando projetos goela a baixo nas comunidades, sem se darem conta do quanto a comunidade tem a oferecer. A kombi#55 surgiu com a ideia de levar a arte que já existe dentro da comunidade para outros lugares. Sejam outras comunidades, o centro do rio ou a zona sul, enfim. É uma exposição itinerante que roda o RJ expondo nossa arte. Atualmente estamos com uma exposição fotográfica que mostra um pouco da visão dos moradores no seu roteiro cotidiano. Tem muita gente que nunca entrou numa favela, muitas sequer entraram numa kombi. A ideia é fazer com que as pessoas vejam a comunidade pelas janelas da kombi, só que pela perspectiva do morador. Estamos abertos aos artistas que quiserem expor seus trabalhos na Kombi#55.

Qual a importância de um prêmio como o do "Brasil Criativo" para o projeto, e o que isso acarreta de mudanças no futuro do grupo?

É muito importante por sermos um projeto tão pequeno que está surgindo em meio aos gigantes. Um título de projeto criativo brasileiro nos dá mais força e credibilidade, e também nos faz acreditar que estamos no caminho certo. Ele acaba valorizando consequentemente o Som do Barraco por que ambos são extensões do Barraco#55 e pode ser que futuramente os integrantes do som do barraco mudem, ou não, o caso é que como eu disse somos um coletivo, mas o legado alcançado vai eternizar esse trabalho independente das pessoas que estiverem conosco.

Sabemos que o Som do Barraco já deixou de estar apenas nos limites do Complexo do Alemão e se apresenta em outros locais. Existem projetos para apresentações em toda cidade? Quais são os planos para o futuro?

Estamos tentando levar cada vez mais o Som do Barraco pra fora da comunidade. Não estou falando em retirá-lo do morro, mas sim em compartilhá-lo com o resto da cidade e quem sabe, num futuro não muito distante, estarmos por todo o Brasil. Parece ser um sonho grande demais, mas o som não pode parar por aqui, e nossa mensagem muito menos.
O Barraco não vive só de som, também vive de sonhos, projetos e de muito trabalho para fazer as coisas acontecerem. Aos poucos estamos vendo os resultados.

 Você é a única menina da banda? Como é o relacionamento com os meninos? Já sofreu algum preconceito?

O fato de eu ser a única menina no grupo não é bem verdade, por que tem a Ellen Sluis que embora não cante com a gente, é parte fundamental da organização como todos nós. Más o fato de eu ser a única menina no palco nunca foi um problema. Muito pelo contrário. As vezes acabo sendo mimada por isso, rsrs. A relação com os meninos sempre foi muito boa, estamos sempre nos encontrando independe de ensaios, para colocar assuntos em dia, discutir ideias. Jamais me senti tratada de maneira indiferente. Somos praticamente uma família.

Você considera importante as mulheres se engajarem socialmente de alguma forma?

 Sim, claro! Por muito tempo as mulheres foram tratadas como objetos, não tinham direito de nada que não fosse permitido por seus pais ou esposo. Muitas coisas básicas nos foram negadas ao longo da história. Embora muitos digam que alcançamos os tais dos direitos iguais, eu vejo que ainda estamos muito atrasados. Ainda vejo mulheres recebendo salário menor que homens, sendo julgadas por atitudes que se relacionada aos homens seriam tratadas como normal. Acho que se as mulheres não se empenharem em mostrar do que são capazes certamente ninguém vai fazer o menor esforço para provar o contrário, até por que nosso sistema é preconceituoso, e esse preconceito já está enraizado nas famílias. Vou dar um exemplo. É muito comum (muito mesmo) ver as meninas tendo como primeiro brinquedo as bonecas, joguinho de cozinha, ferro de passar... E se a menina diz que quer um carrinho ou qualquer outro brinquedo, os pais dizem, "você tem que brincar com coisas de menina." Então eu pergunto, como vamos acabar com o preconceito e essa desigualdade se desde cedo ensinamos nossos filhos da maneira errada? Acho que as mulheres deveriam ser mais conscientes com relação ao seu real papel na sociedade.

Qual o sonho e os planos concretos da Jessica Souto na carreira?

 Eu já conquistei muita coisa até aqui. Claro que sempre apoiada e com muita ajuda. Digo eu, por que minhas conquistas pessoais tem um peso maior do que as conquistas profissionais. Hoje eu to me dedicando ao som do barraco, e meu atual objetivo é quebrar os estereótipos da favela e mostrar que somos maiores que a dificuldade, desigualdade e o preconceito que sofremos. E o sonho é esse, expandir, levar não só conscientização, mas também mensagens de dia melhores. É ver o trabalho crescer e se orgulhar por ser parte dele.

Deixe seu recado para os fãs da Jessica e do Som do Barraco.

A Jéssica não tem fãs não. Ela tem os melhores amigos que alguém poderia ter, rs. Quanto ao Som do Barraco eu só tenho a agradecer, tanto aos amigos, como as pessoas que tem acreditado nesse trabalho. O que posso dizer é que só fazemos isso por vocês. Que enquanto houver uma pessoa que acredita e que capta nossa mensagem então nós estaremos aqui com o maior orgulho do mundo.
A propósito queria fazer um agradecimento especial aos novos integrantes Dan Joseph e Léo Silva, por que os moleques são bons pra caramba e simplesmente entraram de cabeça, mesmo sabendo que o retorno financeiro é quase nenhum, o amor a música e o respeito a comunidade foi maior. Um Salve pra vocês!

Para quem quiser mais informações sobre o trabalho do grupo O Som do Barraco e de Jessica Souto, basta curtir a fanpage: para curtir a página, clique aqui.