quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Em Quem Eu Tenho Que Bater Pra Resolver Isso?


24/02/2016   -    Coluna: Zé do Caroço   Autor: Guilherme Cunha


Alguns anos atrás eu colecionava o gibi do Homem-Aranha e havia um roteirista cujas histórias me chamavam bastante atenção. Seu nome era Paul Jenkins. Jenkins adorava envolver o herói Peter Parker em situações que destoavam dos clichês típicos de super-heróis e que volta e meia apresentavam alguma crítica social.

Numa dessas HQs o Homem-Aranha reencontra um velho inimigo, o Verme Mental, e descobre que ele virou um mendigo. O outrora poderoso vilão telepata era agora um morador de rua aparentemente desequilibrado mentalmente, vivendo em farrapos num beco enquanto tentava em vão se encolher para se abrigar de uma tempestade. Reencontrá-lo nessas condições deixa o herói da Marvel completamente desconcertado.

O Homem-Aranha, tão forte, ágil e valente, poucas vezes se sentiu tão impotente como nessa ocasião, diante da situação de extrema vulnerabilidade em que encontrara o Verme Mental. Tudo que conseguiu fazer foi dar-lhe o seu guarda-chuva, enquanto lhe restava um amargo pensamento irônico:

“Em quem eu tenho que bater pra resolver isso?”

Lembrei-me desse quadrinho ontem à noite, ao passar por um dos inúmeros pontos da nova operação de segurança pública do Rio de Janeiro. Como o governador Pezão parece reconhecer não dar mais conta da violência urbana, foram chamados reforços contratados pelo setor privado. Eufemismo pra dizer que a segurança pública foi terceirizada no Rio.

Agora seguranças contratados pela Fecomércio-RJ (Federação de Comércio do Rio de Janeiro) se unem a policiais militares e guardas municipais em diversos bairros em operações batizadas como Lapa Presente, Méier Presente, Aterro Presente etc. Tudo em nome da (falsa) sensação de segurança que o povo cada vez mais alienado sente ao perceber que as ruas são vigiadas por agentes armados.

Nesse texto não pretendo discutir a legalidade dessa medida ou ausência dela. O que me chamou atenção naquela noite foi o que vi ao passar por uma dessas operações numa praça. Lá estavam inúmeros homens e mulheres a serviço da Fecomércio, com seus coletes coloridos, suas armas e seu balão (!) igual ao da Lei Seca. Todos prontos para “combater o crime”. Em contraste, do outro lado da praça, podia-se ver um número igualmente chamativo de moradores de rua improvisando um abrigo da chuva que tem dado expediente todos os dias nesse mês de fevereiro. Dormiam literalmente na sarjeta.

Quando um vendedor de cachorro quente recolhia seu carrinho espantou um grupo de três baratas que correram pra cima do papelão onde um dos sem teto fazia sua cama improvisada. Mais adiante alguns tentavam matar a fome com os restos de comida das lanchonetes que estavam fechando. Essa cena ocorria exatamente nas costas de todos os agentes da lei e da ordem que ali se encontravam completamente indiferentes a essa realidade. De fato, eles não estavam lá pra isso. E esse é o problema.

Sua função ali é essencialmente repressiva. Mais até do que prender bandidos, eles estão ali pra desestimular quem queira cometer roubos. Sua presença deve ser intimidadora para manter a ordem. Praticamente a mesma coisa que a Polícia Militar e a Guarda Municipal fazem. Mas, diante de um cenário desolador como o dessa praça, esses garbosos guardiões da segurança pública só conseguem transmitir a absoluta impotência do Estado perante a desigualdade social.

Eles representam mais um esforço do governador e também do prefeito Eduardo Paes em tentar resolver combater a criminalidade no Rio. Isso com a anuência de boa parte da população. Gostaria de saber se na cabeça de algum daqueles agentes não ocorre que a fome e a miséria são crimes também. Será que um deles não pensou:

“Em quem eu tenho que bater pra resolver isso?”



Comecei a pensar que pelos lugares por onde passo o número de moradores de rua tem aumentado quase na mesma proporção que o número de agentes treinados para reprimir. Lembrei de uma amiga minha  que me mostrou um dado alarmante do CRESS (Conselho Regional de Serviço Social).

Nos últimos dez anos a prefeitura do Rio de Janeiro cortou cerca de mil vagas de assistentes sociais na cidade. A cada ano Eduardo Paes tem diminuído o número desses profissionais. Em 2006 haviam 1500 e hoje são pouco mais de 500. Os abrigos que acolhem uma parcela da população de rua também se encontram longe do ideal. É impossível não ligar esse descaso com medidas sociais inclusivas com a política repressiva do prefeito, que prefere investir mais numa Guarda Municipal que serve pra perseguir camelô e espancar folião em bloco de carnaval.

Ou seja, ao mesmo tempo em que não se pode acusar sua política de segurança pública de ser inútil, não se pode negar o quanto ela é fútil.

Nas ruas vivem todos os tipos de pessoas e nem todas são pedintes. Lá estão os dependentes químicos, os que fugiram da violência de comunidades, pessoas com problemas mentais que não tem quem olhe por eles e até mesmo trabalhadores que, por ganharem o suficiente apenas para comer, não tem como pagar moradia ou, tendo onde morar, não tem o suficiente para pagar a passagem de volta para casa todos os dias.

É um problema social complexo que o prefeito parece achar não ser digno de importância. Ou talvez ache que seus guardas armados de cassetetes possam se encarregar do assunto.

“Em quem eu tenho que bater pra resolver isso?”

Podia ser uma piada, mas não é. É apenas frieza diante de um sofrimento alheio ao seu. Apoiada por muitos cidadãos adeptos da política de segurança repressora e intimidadora, satisfeitos com a ilusão que a “sensação de segurança” lhes traz.

É justo? Não sei. Estão preocupados em chegar em casa vivos numa cidade violenta. Mal sabem que essa preocupação é um luxo para muitos que vivem nas ruas e estão à mercê dessa mesma violência tanto dos bandidos quanto da polícia, além de sofrerem um misto de ódio e desprezo da sociedade.

A sociedade que já está ocupada demais em saber se os seus chegaram em casa com segurança para poder dormir em paz sem se preocupar com o resto. São culpados por não perderem o sono pensando em quem sobrou do lado de fora? Não sei. Não tem baratas na cama deles.

Seguindo pela praça até o final avistei gente revirando o lixo. Outros usando os sacos de lixo pra dormir. Enquanto isso, um caminhão da Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana) fazia a coleta. Logo os sem teto tiveram que parar o que estavam fazendo e irem dormir em outro lugar.

Em todos os grandes eventos do Rio de Janeiro, poucas pessoas trabalham mais que os funcionários da Comlurb. Em 2013 a companhia anunciou que até este ano subiriam para 25% o lixo reciclado. Pouco antes da Copa de 2014 uma greve dos garis ficou famosa na cidade por dobrar o prefeito e garantir um justo aumento de salário para a categoria.

Talvez tal conquista se deva menos pela importância que o trabalho dos profissionais tenha para Eduardo Paes e mais pela importância que o lixo tem para ele. Naquele mesmo ano foi criado o Programa Lixo Zero, que visava eliminar totalmente das ruas o descarte de resíduos. Virou referência internacional ao multar qualquer um que jogasse lixo no chão.

Mas não impediu que nas portas de todas as casas pessoas esfomeadas rasgassem os sacos pretos sujando tudo ao redor enquanto vasculhavam atrás de sobras que seriam uma refeição garantida até o próximo dia de passagem do caminhão da Comlurb.



Mas não pensem que a empresa e o prefeito fingem que a população de rua não está lá. Desde 2010 a prefeitura ordenou a Comlurb que colocasse pedras pontiagudas debaixo dos viadutos e armações de metal nos bancos das praças para impedir as pessoas de se deitarem ali.

Em abril de 2015, segundo o site RJ Notícias, um grupo de pessoas acusou os garis de abordagem violenta ao expulsarem moradores de rua da Cinelândia. Um dos sem teto declarou:

“Eles vieram falando para a gente sair, que iam recolher nossos colchões e jogar água na gente com aquele caminhão-pipa usado para lavar calçada, se continuássemos ali. Eles disseram que estavam cumprindo ordens e que a gente não poderia ficar mais ali. Se a gente insistisse, eles iam usar a força para tirar a gente”




Gostaria de concluir dizendo que os moradores de rua são tratados como lixo na nossa cidade. Mas isso seria uma mentira. O lixo é mais bem tratado do que eles. 

Foto 1: Spiderfan.org
Foto 2: Ioerj.com
Foto 3: Extra On line
Foto 4: Recicloteca.org
Foto 5: O Globo