terça-feira, 25 de agosto de 2015

O ovo da serpente

25/08/15

Colunista convidado: Guilherme Cunha






Correu o mundo no mês passado uma imagem inusitada que mostrava a Rainha Elizabeth II da Inglaterra, ainda criança, executando um gesto identificado como a saudação nazista.

A imagem faz parte de um registro familiar feito pelos tios da então princesa em 1933 e causou enorme polêmica. Vários alegaram que era sensacionalismo, pois a Rainha era só uma criança e naquela época ninguém ainda tinha dimensão de que realmente o nazismo era tão terrível.

Tais observações não deixam de serem verdadeiras. Porém, nos levam a uma conclusão perturbadora: que de fato devia ser normal pra muitas crianças e famílias na década de 1930 enxergarem no nazismo uma coisa boa. Inegavelmente Adolf Hitler foi um dos líderes mais populares da História e conseguiu convencer uma nação inteira, além de países vizinhos, de que estava fazendo o bem.

A filósofa Hannah Arendt foi a primeira a abordar com mais maturidade o efeito psicológico do nazismo ao cunhar a expressão “banalidade do mal”. A maioria das pessoas que seguiam as ordens de Hitler direta ou indiretamente não eram maléficas e caricatas, repletas de desvios de caráter, como muitas vezes fantasiamos nossos inimigos ou aqueles que foram taxados como vilões pela História. Eram na realidade gente comum que se deixou levar, sem perceber, até a condição de instrumento de monstruosidades.

O mais estranho é como toda essa discussão soa tão perturbadoramente atual.

Nossa época atual está repetindo muitos dos contextos sociais políticos e econômicos do começo do século XX e isso inclui uma bizarra inclinação da sociedade ao conservadorismo, racismo, machismo, militarismo e nacionalismo. Tal como ocorreu há mais de 100 anos a sociedade contemporânea, tanto no Brasil como no resto do mundo, está adotando o discurso de líderes carismáticos que oferecem falsas soluções simples para problemas complexos, e estamos prestes a pagar um preço alto por isso.

Muita gente esquece, e outros fazem de conta que não sabem, que o movimento nazista que varreu a Europa na primeira metade do século passado não aconteceu de uma hora pra outra. Vários elementos pavimentaram o caminho para ascensão de Hitler, e muitos deles encontram uma intrigante correspondência com situações que temos vivenciado nos últimos anos. 

A intolerância religiosa, a xenofobia, o anticomunismo e a bizarra descoberta de um histérico patriotismo adormecido se unem a ignorância política e histórica para formar o mais perigoso cenário possível.

É verdade que quando expomos este tipo de temor com alguém, logo dirão que é exagerado e desprovido de senso de realidade, pois episódios de tomada do poder pela extrema direita como o nazifacismo na Europa e as ditaduras militares latino americanas são lembranças distantes. O problema é que elas nunca foram tão pouco distantes.

Em 1923 Hitler tentou tomar o poder na Alemanha através de um golpe que fracassou. Ele era radical demais para o povo dos anos 20. Ficou preso cerca de um ano e depois foi libertado porque ninguém considerava mais o Partido Nazista uma ameaça. A foto da Rainha Elizabeth fazendo a saudação nazista criança é de 10 anos depois, quando Hitler chegou ao poder pelos meios legais.

Isto porque ninguém imaginava que os nazistas seriam capazes de plantar a semente do ódio e da intolerância  em jovens da Alemanha e do mundo e que todos nós colheríamos seus frutos amargos na geração seguinte.

O maior perigo das atuais manifestações, como as que ocorreram no Brasil dia 16 de agosto, não é se constituir uma ameaça ao poder estabelecido por um sistema democrático, nem mesmo por colocar uma multidão pra caçar fantasmas que não existem como a famigerada “ameaça comunista”. Não. O maior mal é o que está sendo feito na mente das crianças.

Crianças que vão crescer com uma visão completamente distorcida do sistema e que poderão no futuro cometer monstruosidades em nome daquilo que hoje aprenderam a chamar de o bem. Mesmo que o bem seja o mal.

Se já é difícil pra um adulto ter discernimento pra separar o bem e o mal nos muitos e complexos caminhos da vida, imagine uma criança que cresce ouvindo as pessoas ao seu redor extravasando seu mais puro ódio infundado como se fosse algo bom?

Isso sem contar iniciativas de gosto duvidoso como o recrutamento de jovens pela Igreja Universal do Reino de Deus para a formação do assim chamado Gladiadores do Altar ou a criação de ditos “movimentos sociais”sem nenhuma preocupação com as reais necessidades dos desafortunados pela sociedade como o tal Revoltados OnLine.




Esse contexto de “barril de pólvora” também foi explorado pelo diretor Ingmar Bergman em seu filme O Ovo da Serpente, em que mostra o estado de intolerância em que vivia A República de Weimar – como a Alemanha era chamada após a Primeira Guerra Mundial – naquele mesmo ano de 1923 em que Hitler tentou tomar o poder pela primeira vez:



“É como o ovo de uma serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”.

Imagem: 1 - Um blog que pensa, 2 - AP Photo, 3 - Reprodução