quarta-feira, 30 de março de 2016

Golpeachment


30/03/16    -    Coluna: Zé do Caroço    Autor(a): Guilherme Cunha



O Brasil está dividido. Já estava em 2013. Observei isso vendo aquela massa amorfa de gente que ia para as ruas marchando lado a lado, porém sem enxergar naquele momento que não abraçavam as mesmas causas. Tinham diferenças irreconciliáveis envolvendo questões fundamentais como aborto, drogas, maioridade penal etc. Nas eleições de 2014 finalmente perceberam que conviviam com estranhos, o que foi piorando em 2015, permeado pelas investigações da Operação Lava Jato e chegou ao auge em 2016 com o processo de impeachment.

Ocorrendo ou não o impedimento da presidente, dificilmente haverá uma conciliação. Triste é imaginar para onde isso vai nos levar.

Mas a História nos ensina que existe algo pior do que tomar partido neste momento de crise. É não tomar partido nesse momento de crise. É claro que sempre existe o risco de você escolher o lado errado, mas não escolher significa que mais cedo ou mais tarde escolherão à força por você. Pois, dependendo de quem vencer, pode ser que nem direito a uma escolha você tenha mais.

E isso começa quando algumas pessoas querem caçar o seu voto, talvez o instrumento mais simbólico da democracia.

A divisão do nosso país hoje, infelizmente, não tem muito a ver com ideologia, muito menos com corrupção. É um duelo de narrativas. Ganha quem contar a melhor versão da história aos ouvidos da população.

 

Numa delas, contada pelos poder dos holofotes e megafones mastodônticos dos veículos da imprensa nacional, o Gigante acordou. Ou seja, após anos de uma progressão praticamente aritmética de modelos de governo corruptos, a população decidiu dar um basta na corrupção, a qual teria ganhado contornos dramáticos a partir do momento em que o PT chegou à presidência.


Com sua corrupção sistemática, o partido do ex presidente Lula e da presidenta Dilma suborna e compra apoios. Em sua sede de poder, aparelhou o Estado e transformou programas sociais em chantagens contra os pobres alienados. Além disso, destruiu a Saúde e a Educação, nos fazendo passar vergonha internacionalmente como um país atrasado.

A decepção com o PT e com a Esquerda fez com que a massa amorfa de 2013 fosse cooptada pela Direita, cuja corrupção seria tão pontual quanto a união do povo com eles para tirar a Esquerda do poder. O processo de impeachment de Dilma será sintomático de uma avalanche apartidária de combate aos corruptos de todos os partidos e ideologias e salvará o Brasil.

Do outro lado do ringue, a narrativa é feita utilizando como principal arma uma das maiores criações da tecnologia das últimas gerações: a internet. Através dela deixamos um testemunho que, na pior das hipóteses, ficará para a História sobre o que realmente ocorreu nestes dias turbulentos. Nesta versão, o Gigante não acordou. Ele está sonâmbulo. Caminha dormindo para dentro de um pesadelo.


Essa narrativa parte do princípio que a corrupção existiu por décadas, e só encontrou quem a combatesse justamente dentro do governo do PT. Justamente por Lula e Dilma terem promovido desestatização da máquina pública contaminada das gestões anteriores e concedido espaço para demais autoridades, como procuradores e policiais, fazerem o seu trabalho. Aqui a corrupção é algo muito mais complexo. Ela não parte necessariamente do Poder Executivo, sendo um dos seus expoentes o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que por sinal já estava por ali muito antes da primeira eleição do Lula.

Aliás, se a intenção de Lula fosse aumentar em vez de diminuir a corrupção, por que ele realizaria uma completa reforma na Corregedoria Geral da União, que passou a ser Controladoria Geral da União, substituindo Geraldo “Engavetador Geral” Brindeiro, acusado de receber dinheiro de uma empresa fantasma do bicheiro Carlinhos Cacheira para não levar adiante mais de 600 denúncias contra corruptos, por Jorge Hage, ex membro do PSDB (partido rival do PT)? Segundo o próprio Hage, hoje no PDT, foi o governo Lula quem levantou a tampa do bueiro do esgoto da corrupção no país.

Nessa versão, o Poder Judiciário também não é à prova de corrupção. Para dizer a verdade, muitos creem que ele seja o mais corrupto e o mais difícil de se corrigir. Não é segredo para ninguém que muitos doutores da lei veem a toga como uma veste sagrada. Já entrou para o folclore nacional o caso da agente rodoviária que teve a audácia de peitar um magistrado dizendo que “ele não era Deus”.

Mas o que é mais interessante nessa narrativa é que corrupção não seria o único mal do Brasil, e talvez nem seja o mais grave. Ela está lá, disputando a dianteira com a miséria, a fome, a desigualdade social. Questões que nunca são abordadas pelo outro lado.

Aqui também o PT fez justamente o inverso de tudo o que foi dito. Os governos Lula e Dilma foram os que mais investiram em Educação e Saúde. Os programas sociais foram emancipadores para a maior parte da população vulnerável. Pela primeira vez o número de pessoas na extrema pobreza diminuiu tanto, a ponto do Brasil ser excluído do Mapa da Fome da ONU no atual governo Dilma, esse mesmo que querem derrubar através de um golpe de estado.

Pois impeachment sem crime de responsabilidade fiscal é um golpe de estado. E deixa para sempre uma marca negativa na trajetória de um país. Sendo mais dramático ainda no Brasil, o qual passou a ser finalmente respeitado mundo afora como um país progressista. Culpa do PT.
Mas ninguém está dizendo que o PT é perfeito. Seus erros teriam sido justamente ceder em acordos muitas vezes lesivos aos propósitos democráticos do partido. Acordos que permitiram que gente tradicionalmente ligada à Direita e à corrupção fossem ganhando poder através do próprio PT e de outros partidos como o PMDB, sendo o caso mais emblemático o de Eduardo Cunha.
Tentem explicar ao mundo como alguém sobre quem pesam provas de corrupção e enriquecimento ilícito comanda e agiliza o processo que pretende afastar uma presidente sobre quem até hoje nunca se encontrou provas concretas, ao mesmo tempo em que o processo que tenta tirar o próprio Cunha sempre volta à estaca zero.
Nesta versão, a ideia de que Cunha e os demais corruptos sairiam logo após Dilma num processo natural é história da carochinha. Tanto que a mídia internacional, completamente diferente da nossa, é quase unânime em apontar o impeachment como um golpe contra a democracia capitaneado por corruptos.
No entanto, nem a oposição imaginaria ter terreno tão fértil para plantar suas ideias com tamanha facilidade ao lidar com os preconceitos mais arraigados na sociedade. Agora fica fácil jogar a marca de corrupto não só em Lula e Dilma, mas em todos os vulneráveis, que se tornaram menos vulneráveis conforme o PT os fez conquistar direitos antes destinados a somente uma parcela da população.
Ernest Hemingway, em seu célebre romance sobre a Guerra Civil Espanhola, perguntava “Por quem os sinos dobram?”. Eu pergunto: “Por quem batem as panelas?”

Elas não batem pelo negro que entrou uma universidade com as cotas; pela mãe abandonada pelo parceiro que colocou o filho na escola com ajuda do Bolsa Família; pela esposa que exigiu respeito do marido utilizando a Lei Maria da Penha; pelos estudantes do FIES e do ProUni; pelas famílias que realizaram o sonho da casa própria com o Minha Casa, Minha Vida; pelo homossexual, que hoje tem o direito de gritar para o mundo contra a homofobia e à favor da inclusão; pelo trabalhador que viu o salário mínimo saltar de R$200,00 para R$880,00; pelas crianças que não morreram, diminuindo significativamente a mortalidade infantil; nem por aquelas que moram em locais inóspitos e finalmente podem chegar ao colégio onde estudar porque o governo federal fornece carro, ônibus, bicicleta e até barco através do Programa Caminho da Escola.

Essas pessoas, dessas regiões perdidas dos rincões desse país, nenhuma panela jamais bateu quando as panelas deles estavam vazias. Nenhuma bateu quando o governo levou eletricidade até onde elas vivem através do Programa Luz Para Todos. E cada uma dessas pessoas se enxergou no ex presidente Lula, quando o juiz Sergio Moro ordenou que ele fosse levado ilegalmente debaixo de vara prestar depoimento.

Cada brasileiro cuja vida se tornou mais digna nos últimos catorze anos se viu entrando naquele camburão. O crime: não ter ficado na miséria. E o não é o mesmo do Lula?





Afinal, é muito mais provável que os bilhões desviados da Petrobras estejam não nas contas milionárias da Suíça e vida luxuosa de Eduardo Cunha em Miami, mas num sítio emprestado, um triplex que o ex presidente não comprou, num barco de lata e em dois pedalinhos do Lula. Quem garante isso são os donos do triplex de Paraty, construído em área de preservação ambiental e guardado por seguranças armados, muito mais luxuoso do que aquele onde o Lula nem sequer mora. Não é possível que tanta gente tão rica esteja tão errada ao invés daquele pobre coitado que escapou de virar estatística morrendo de fome no nordeste para ter a audácia de ser presidente.


Claro que o abismo social, que caracteriza os dois lados de maior destaque nessa batalha, teria uma explicação lógica, segundo o pessoal que abraça a primeira narrativa citada anteriormente. A meritocracia.

Sim, eu sei que parece ficção científica, mas tem quem acredite que no Brasil a sociedade beneficia as pessoas mais competentes, num processo sistêmico rigoroso, de fazer inveja à Platão. Curiosamente, é um credo professado pelas mesmas pessoas que costumam afirmar que o maior mal do país é a corrupção. Entre seus maiores defensores estão os eleitores do PSDB adeptos do impeachment, partido esse que, após duas décadas governando o estado de São Paulo, implementou uma versão mais sofisticada da meritocracia: a merendocracia.




Enfim, tudo sempre parece mais simples quando se está do lado do mais forte. O PMDB do vice presidente (e postulante ao cargo titular)  Michel Temer que o diga, ele faz isso desde que era MDB e fazia oposição de fachada à ditadura militar. Mas o mundo real é sempre um pouquinho mais complicado do que querem que pareça. Numa versão você pode dizer que Delcídio do Amaral foi um membro do PT preso por corrupção causada diretamente por ações do partido.

Numa outra versão você pode demonstrar como Delcídio fez uma longa carreira política em vários partidos, sempre se beneficiando de quem estava no poder, tendo trabalhado na Petrobras no governo FHC, migrado do PSDB para o PT com a ascensão de Lula, até chegar a líder do partido no Senado, ser preso, fazer delação premiada e ir para a manifestação do dia 13 de março pedir o impeachment da Dilma ao lado de muitas pessoas que - quero acreditar nisso - não estão abraçando as mesmas causas que ele.

Tudo depende de que história estamos contando. Mas alguns mais inflamados em seus discursos morais deveriam se preocupar mais que registro gostariam de deixar para as próximas gerações sobre o papel que desempenham hoje.





Imagens:
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