domingo, 27 de março de 2016

O Jesus Político


27/03/16   -    Coluna: Zé do Caroço (edição extra)    Autor(a): Guilherme Cunha




Muito se fala sobre Jesus, mas pouco se reflete sobre o seu papel na sociedade há dois mil anos. Guardadas as devidas proporções, o Jesus histórico seria alguém considerado de Esquerda.

Evidentemente os conceitos de Esquerda e Direita foram criados muito depois, nas Assembleias da Revolução Francesa, e bastante modificados com o decorrer do tempo. E muitas das questões das quais se originam as versões atuais de Direita e Esquerda não existiam ainda no tempo de Jesus. Como por exemplo o Coletivismo Ocidental, que veio de Santo Agostinho, e o Individualismo Humanista Ocidental, que veio de Erasmo de Roterdã.

Por isso, historiadores costumam achar errado aplicar retroativamente conceitos posteriormente elaborados. Essa prática é chamada de Vício Wiginista e popularmente conhecida como Anacronismo.


Porém, já foi comprovado pela psicanálise a existência de um Inconsciente Coletivo, cujo conceito foi desenvolvido por Carl Jung, e que afirma que todos nós nascemos com um inconsciente inato, que existe independente da experiência individual de cada um. A forma do nosso contato com o Inconsciente Coletivo é através dos Arquétipos, herdados geneticamente de uma civilização, uma etnia ou um povo.

Os Arquétipos – conceito neoplatônico criado antes de Jung – seriam, de acordo com o psicanalista, os modelos pelos quais a psique humana se expressa. Vários pesquisadores tomaram como base esse raciocínio para explicar as semelhanças encontradas entre diversos grupos de pessoas ao longo da história, que eram separados em milhares de quilômetros e milhares de anos e, mesmo assim, apresentavam comportamentos, narrativas e tradições convergentes.

Joseph Campbell elaborou seu famoso estudo A Jornada do Herói com este pensamento, mostrando semelhanças entre histórias que se passavam em tempos e lugares diferentes, mas guardavam pontos em comum, os Arquétipos. Isto incluiu a própria trajetória de Jesus.
Eu não sou historiador nem psicanalista, mas respeito o trabalho de ambos. No entanto, como é evidente que existe uma contradição entre eles, vou tomar a liberdade de seguir uma linha de raciocínio, deixando a outra de lado.

 
Jesus viveu num período em que o Império Romano governava boa parte do mundo, incluindo a Palestina, cuja capital, Jerusalém, fora conquistada pelos exércitos do General Pompeu em 63 a.C. Após este fato, Tibério tornou-se o imperador de Roma sucedendo Augusto e para ele a região da Palestina nada mais era do que uma das muitas províncias conquistadas, que foram obrigadas a se submeter às leis romanas. Roma era o centro do mundo, com religião, leis e costumes próprios. A Palestina foi então dividida em duas províncias: Judeia e Galileia. Entre as duas ainda existia a Província da Samaria, dos dissidentes dos judeus chamados Samaritanos, que também estavam sob o jugo do Imperador.
Os judeus viviam oprimidos por uma ditadura militar. Tibério controlava aquele povo através de reis de fachada. Foi daí que surgiu a linhagem de Herodes, que era idumeu e não judeu. O representante de Roma era quem de fato exercia o poder como governante da região. Neste caso, o Prefeito (ou Procurador) era Pôncio Pilatos, cujo governo foi considerado brutal demais até mesmo pelo império.
Já os Judeus eram um povo intimamente ligado à religião, tanto que na prática os sacerdotes eram mais influentes entre o povo do que Herodes, vivendo numa instável disputa de poder com os romanos. Os grupos mais conhecidos eram: Saduceus, Zadoqueus (ou Zadoquitas), Fariseus, Herodianos, Essênios, Zelotes (ou Zelotas) e Sicários.

Vamos observar a seguir cada um desses grupos, seu papel político na sociedade, e como Jesus se relacionava com eles:

Na Extrema Direita estavam os Fariseus. Eram a classe média da época e bastante influentes. Acreditavam mais na tradição oral do que na das Escrituras, eram nacionalistas e avessos à influência estrangeira. Acreditavam em anjos, demônios, na ressurreição e na vinda de um Messias. Dividiam-se entre as doutrinas das Escolas de Hilel, mais liberal, e de Shammai, mais radical.

Jesus teria sido um fariseu - pois era chamado de rabino, título que apenas os fariseus poderiam carregar – da Escola de Hilel. Hilel, o Ancião, que morreu antes de Jesus nascer, era o autor da frase “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você”, que muito influenciou nos ensinamentos de Jesus. O sábio também dizia para se orar por aqueles que lhe desejavam o mal. Jesus teria se baseado neste ensinamento para professar o seu pioneiro e contundente conceito de “Ame os seus Inimigos”.

Como logo veremos, Jesus seguiu outras correntes da época e passou a entrar em atrito com os fariseus, pois considerava seu conservadorismo hipócrita. Ou seja, faziam tudo diferente do que professavam e eram, inclusive, materialistas.

Na Direita estavam os saduceus. Eram um pequeno grupo de aristocratas de classe alta. Tinham mais abertura para a influência estrangeira e acreditavam mais no estudo das Escrituras que na tradição oral. Também tinham mais poder na escolha do Sumo Sacerdote, além de demais membros do Templo e autoridades, do que os fariseus, com quem tinham uma rixa. Eram céticos à respeito de anjos, demônios e milagres.

Também se tornaram inimigos de Jesus e teriam sido responsáveis, junto aos romanos e parte dos fariseus, pela conspiração que mandou executá-lo. O personagem título da obra Ben-Hur, no início da história, é um exemplo de saduceu.
Na Centro Direita estavam os zadoqueus. Eram um grupo dissidente dos saduceus, mais voltados à espiritualidade e à espera do Messias. Viviam mais isolados pois reprovavam a corrupção do Templo. Apesar de alguns estudiosos os classificarem como Extrema Direita, é a seita sobre a qual menos se tem informações. Tomo a liberdade de classificá-los como a Direita moderada por seu caráter reformista aparentemente pacífico e por seu paralelismo ideológico com os Essênios. Não consta que tenham tido qualquer relação com Jesus.




No Centro estavam os herodianos. Eram um grupo político também dissidente dos saduceus e partidário do apoio à linhagem do Rei Herodes, pois consideravam que ele era o Messias, embora pouco fossem ligados à religiosidade. Ao contrário de alguns estudiosos, que os classificam como de Esquerda, o mais provável é que fossem de Centro pois, como todos os partidos de Centro ao longo da História, se alinhavam a quem detinha o poder.

Além de Herodes, se aliaram aos saduceus na forma de lidar com a religião (privilegiando as Escrituras em vez da tradição oral) e depois acabaram formando uma aliança com os fariseus contra Jesus.

Na Centro Esquerda estavam os Essênios. Eram um grupo espiritualizado que, a exemplo dos zadoqueus, viviam isolados como uma crítica à corrupção do Templo e da sociedade. No entanto, tinham regras muito específicas de convivência e comportamento, com completa renúncia ao materialismo. Não se deitavam com mulheres (nem as aceitavam entre eles), só usavam branco, lavavam-se para comer e eram vegetarianos. Alguns estudiosos os classificam como de Extrema Direita, o que parece impossível para os padrões atuais, já que tinham uma existência comunitária que abolia a propriedade privada.

Inspiraram bastante o cristianismo e particularmente os monges cristãos. Apesar de Jesus não poder ser considerado um essênio, pois não seguia muitas das rígidas regras deles – o próprio fato de Jesus se misturar com o maior número de pecadores possível vai contra toda a ideia de pureza pregada pela seita - é evidente que tanto Jesus quanto João Batista tiveram contato com a doutrina dos essênios em algum momento de suas vidas anterior ao batismo no Rio Jordão. É possível mesmo que ambos tenham convivido diretamente com membros desse grupo, que os influenciou pelo resto de suas vidas.

Os essênios também esperavam pelo Messias. Curiosamente, uma das pessoas que foi considerada como o tal foi Menahem, o Essênio, que viveu na corte do Rei Herodes I - o Grande, aquele que conheceu os Reis Magos. Por ser amigo desse Herodes, que tinha grande respeito pela seita, Menahem tinha que usar diplomacia, pois os essênios detestavam os romanos. Quando o Rei morreu, pouco depois do nascimento de Jesus em 4 a.C. (Jesus não nasceu no Ano 0 por um erro do cálculo do calendário cristão), o seu destino fica nebuloso na História.
De acordo com o Talmud, Menahem foi excomungado por Hilel, o Ancião, com quem teve uma desavença, e também por outros sábios por ter agido mal. Historiadores sustentam que Menahem teria se proclamado messias e liderado uma tentativa de revolta. Possivelmente terminou sendo morto pelos romanos, que supostamente  deixaram seu cadáver jazer no chão por 3 dias.

 
Na Esquerda estavam os zelotes. Eram um grupo, teoricamente dissidente dos fariseus, cuja principal característica era a luta contra a opressão e ocupação romana para tornar Israel novamente uma nação soberana. Seus fundadores foram Judas, o Galileu (também conhecido como Judas de Gamala), um daqueles considerados Messias por parte da população pouco antes do surgimento de Jesus, e o fariseu Zadoq.

Este Judas liderou uma revolta judaica contra os romanos em 6 d.C., motivado por um censo que tinha por finalidade estabelecer uma carga de tributos a serem cobrados do povo. Sofreram dura repressão do império e não se sabe o que houve com Judas, o Galileu, mas provavelmente foi morto em batalha, ou executado após ser aprisionado. Mas os Zelotes continuaram a existir, defendendo a revolução.

Jesus aparentemente tinha uma relação de tolerância com eles e é mais do que provável que muitos dos seus seguidores fossem zelotes. Um dos seus discípulos era chamado Simão, o Zelote. Para alguns estudiosos, Judas Iscariotes era um zelote que teria se decepcionado com o pacifismo e aversão de Jesus pela luta armada contra os invasores. Existe até mesmo a versão de que ele entregou seu Mestre aos Sacerdotes do Templo para que Jesus se identificasse como Messias e os liderasse contra Roma, apesar do próprio Jesus ter avisado aos discípulos que seu destino era outro.

Alguns anos após a crucificação de Jesus, entre 66 d.C. e 73 d.C., os zelotes lideraram a Grande Revolta Judaica contra Roma. Foi uma revolução que fracassou. Os romanos, então, destruíram o Templo, do qual não sobrou pedra sobre pedra, exatamente como Jesus previra.

Na Extrema Esquerda estavam os sicários. Eram um grupo dissidente dos zelotes, e mais violento. Seu nome vinha da pequena adaga que carregavam debaixo das vestes. Em locais públicos os sicários as sacavam e matavam romanos e judeus simpatizantes para, em seguida, escaparem se misturando com a multidão. Com o passar dos anos, a palavra sicário passou a ser usada para designar assassinos de aluguel.
Alguns acreditam que Barrabás era um sicário e por isso ele estava preso quando foi chamado por Pilatos para que o povo escolhesse, entre ele e Jesus, quem seria libertado. Também há quem acredite que o motivo da multidão escolher dar a ele a liberdade tenha sido uma manobra de alguns saduceus, fariseus e romanos de apresentarem um herói popular – pois fazia parte da resistência contra o império – que cairia nas graças daquela gente, ao contrário de Jesus, acusado de heresia, e no fundo muito mais perigoso para o status quo dos poderosos, já que supostamente alegava ser o Rei dos Judeus.



Mas vale salientar que quase todos estes segmentos apresentados acima eram bastante excludentes. Os fariseus representavam aproximadamente 3% da população e essênios e saduceus cerca de 2%. Provavelmente os zelotes tinham muito mais simpatizantes entre a população miserável dos judeus da Antiguidade. Essa massa popular era conhecida simplesmente como Povo da Terra.

Além da população judaica, ainda haviam diversos peregrinos, especialmente em Jerusalém, e os já citados samaritanos e romanos. Neste contexto, fica claro que Jesus se encaixava com a Esquerda daquele período, e quase sempre estava em oposição à Direita. Mais do que isso, ele abraçava muitas ideias que seriam defendidas pela Esquerda no futuro.

Jesus era contra a revolta armada contra Roma, pois segundo ele a libertação viria de um modo espiritual e não no mundo físico. Evidentemente era contra a opressão causada ao seu povo, mas enxergava tudo aquilo como algo menor no contexto geral das coisas.

Tanto que dizia “Meu reino não é desse mundo”. Não se importou em curar o servo de um centurião. Pegou um publicano (cobrador de impostos), Mateus, e o fez seu discípulo. Questionado se era correto pagar tributos à Roma, pegou uma moeda e perguntou de quem era o rosto da imagem. Ao responderem que era César, proferiu um baita exemplo do que hoje nós conhecemos como o conceito do Estado Laico:

“Dê a César o que é de César. E dê a Deus o que é de Deus.”

Porém, isto não significava que aceitava o status quo e nisso se assemelhava a Esquerda do seu tempo (não é coincidência que hoje em dia a maioria das releituras coloque Jesus ora como zelote, ora como essênio). A diferença é que era inclusivo e não excludente.

Num período em que judeus e samaritanos se odiavam mutuamente – os samaritanos eram descendentes de judeus com outros povos, além de professarem a religião de outro modo, e por isso sofriam preconceito – Jesus ia na contramão dessa xenofobia. Ofereceu a “água da vida” (ou seja, a salvação da vida eterna) à mulher samaritana que encontrou no poço e intencionalmente contou aos judeus a parábola do Bom Samaritano, a qual ficou tão famosa que, com o passar do tempo, samaritano transformou-se em sinônimo de altruísta.
Sobretudo, Jesus se preocupava com a qualidade de vida das pessoas. Multiplicou os pães e os peixes para alimentar uma multidão de seguidores famintos. Curou inúmeras pessoas afligidas por diferentes enfermidades. Quando curou um cego de nascença – que segundo a tradição havia nascido daquela forma por vontade de Deus pelos pecados de seus pais – disse: “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.”



Ao realizar curas num sábado, o que era proibido, teve um de seus diversos atritos com os fariseus e os escribas, doutores da lei (eruditos pedantes do período). Isso se repetiu quando seus discípulos foram colher espigas para comerem, o que também era proibido no sábado. Questionado pelos fariseus, afirmou: “sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”.

Mas seu maior atrito com os fariseus e escribas foi quando os chamou de raça de víboras, acusando-os de serem guias cegos do povo judeu e hipócritas na sua falsa devoção à Deus. Sua preocupação em propagar o amor ao próximo e a fazer os seres humanos se importarem uns com os outros pode ser sintetizada nessas palavras:

"Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;
Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver.
Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?
E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos?
E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?
E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que tudo o que fizestes ao menor dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes".

Mateus 25:35-40
Na Santa Ceia, Jesus repartiu o pão de maneira deliberadamente simbólica. Alguns apontam neste gesto a primeira prática do socialismo. Outros são contrários a isso, apontando a Parábola dos Talentos – onde servos bons multiplicam o dinheiro lhes dado por seu senhor e o servo mau apenas devolve o mesmo dinheiro que não fora aplicado - como um exemplo de como Jesus incentivava o que depois se tornaria o Capitalismo. Só que quase todas as Parábolas funcionavam como metáfora. O dinheiro dessa história poderia simbolizar um dom a ser trabalhado, ou qualquer outra graça concedida por Deus aos homens, para que a desenvolvessem, e não necessariamente dinheiro no sentido literal.

De fato, o Papa Francisco já declarou que considera os comunistas como os cristãos não convertidos, pois o comunismo teria pego para si várias bandeiras defendidas pelo cristianismo. Além disso, é praticamente impossível imaginar Jesus como um adepto do modelo capitalista atual do mundo, pois sempre fora um opositor ferrenho da ganância.


Certa vez um homem inusitadamente pediu-lhe que fizesse seu irmão repartir a herança com ele. Em um raro momento em que destitui-se de autoridade sobre algo, Jesus falou: “Homem, quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós ?” Em seguida fez um alerta: “Acautelai-vos e guardai-vos da avareza. Porque a vida de qualquer não consiste na abundância do que possui."

Quando foi procurado por um jovem rico, disse-lhe para vender todos os seus bens e distribuí-los aos pobres. Ao ver mercadores trabalhando dentro do Templo, encolerizou-se e os atacou. Explicou textualmente: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.”

Não é de se admirar que o episódio mais infame da história do comércio no mundo foi quando Judas vendeu Jesus por 30 moedas de prata.

Pois Jesus sempre apontou o caminho oposto ao da ascensão pessoal na sociedade terrena, tão passageira quanto ilusória:

"Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam;
Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.
Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração."

Mateus 6:19-21



Feliz Páscoa!

Imagens:

1 – gospelprime.com.br
2 - Wikipedia
3 - josefranciscoartigos.blogspot.com
4 - costumesdabiblia.blogspot.com
5 - Imagick
6 - iadrn.blogspot.com
7 - santuariodelasmercedes.org
8 - semeandorcc.pdf.blogspot.com
9 - odiscipulogauderio.com
10 - radioc.com.br