02/03/16 - Coluna: Zé do Caroço Autor: Guilherme Cunha
Se tem uma coisa que pode ser dita sobre a premiação
do Oscar deste ano é a sensação de que todo mundo ali estava correndo atrás do
prejuízo. O discurso de Patricia Arquette contra o sexismo na indústria no ano
passado somado à indignação causada pela ausência de negros nas indicações mais
recentes (sobretudo de Jada Pinkett Smith) abriu uma porteira, e a noite foi
marcada por constrangimentos, pedidos de desculpas mal feitos e discursos edificantes
vazios. Como disse a Ana Maria Bahiana, todo mundo queria falar de diversidade
ao mesmo tempo. E creio que o resultado foi superficial e vazio. Piora quando
você constata o quanto esta edição do Oscar ficou marcada por uma terrível
falta de noção de timing.
O maior exemplo disso é o vencedor do prêmio por
Melhor Filme. Spotlight – Segredos Revelados conta a história real dos
jornalistas do Boston Globe que revelaram uma rede de pedofilia de padres
encoberta pela Igreja Católica. Não estou criticando a qualidade da obra, mas é
inegável que ela não ganhou só por supostamente ser o Melhor Filme. Tanto que
só arrebatou mais um Oscar, o de Roteiro Original, algo raríssimo de acontecer
na Academia.
Não sejamos ingênuos. Além de artístico, o Oscar é
também um prêmio político a ponto da Primeira Dama dos EUA ter anunciado o
vencedor de 2013 direto da Casa Branca. Aí entra minha crítica à escolha de
Spotlight. O que muitos enxergam como uma premiação pró-jornalismo me soou mais
como uma premiação anti-Igreja ou mais especificamente anti-Papa Francisco.
Vamos falar de timing. Os fatos narrados no longa
metragem ocorreram em 2001, quando João Paulo II era o Papa. Ele jamais tomou
uma medida realmente forte contra os casos de pedofilia na Igreja Católica e
mesmo assim foi santificado pela mesma. Seu sucessor, Bento XVI, teria
abandonado o posto por não conseguir lidar com estes crimes e os de corrupção
que se tornaram sistêmicos. Então, quando finalmente surge um Papa que fala
abertamente sobre pedofilia e lavagem de dinheiro no Vaticano e que cria um
tribunal para julgar não somente os sacerdotes que cometeram pedofilia, mas
também os bispos que os acobertaram no mundo... resolvem lançar um filme
mostrando pela primeira vez como foi descoberta a pedofilia na Igreja. E acho
lindo terem feito o filme que retratasse o processo de apuração jornalística.
Mas dar-lhe o Oscar de Melhor Filme em 2016 me parece contraproducente.
Frisando novamente que eu não acho que isso interfira na obra em si, mas me preocupo com as consequências que podem se voltar contra sua própria mensagem. Da mesma forma não fui contra a novela Verdades Secretas mostrar a realidade da cracolândia, mas achei errado a Rede Globo fazer uma novela pela primeira vez sobre um assunto negligenciado por anos na TV e não mostrar o recente trabalho dos agentes da prefeitura de São Paulo com os dependentes químicos desses lugares, sobretudo quando a própria atriz Grazi Massafera só conseguiu entrar na cracolândia pra fazer laboratório pro papel porque foi com ajudada pelos profissionais da prefeitura, ignorados na ficção.
Ficção essa que, assim como se propõe a denunciar os
erros da realidade, também pode gerar equívocos. Como em Tropa de Elite 2,
quando parte do público achou que o vilão do longa metragem fosse inspirado no
governador da época do lançamento da obra e não seu antecessor. Ou o elogiado
drama russo Leviatã que fez as pessoas olharem criticamente para a Rússia ao
mostrar a revolta de um homem contra a monstruosa corrupção de Estado daquele
país. Mas a história era inspirada num fato real ocorrido em Colorado, nos EUA!
Partindo mais uma vez do princípio que não é só a
qualidade que define o vencedor para a Academia, tínhamos outros concorrentes
como O Quarto de Jack, que trata de modo original de um tema semelhante de
abuso sexual, mas mais urgente e atual, A Garota Dinamarquesa, que conta a história
antiga, porém atemporal, da primeira pessoa a realizar uma cirurgia de mudança
de sexo, e A Grande Aposta, que retrata também um evento real, a crise de 2008,
de um passado que ainda é muito mais presente que o de Spotlight. Além deles,
também tínhamos O Regresso e Mad Max – Estrada da Fúria, onde George Miller
trouxe o discurso feminista para seu famoso universo pós-apocalíptico. Mas como
num jogo de cartas marcadas, sabíamos desde o começo que Mad Max não ganharia
nada além dos prêmios técnicos.
A decepção foi mesmo não premiarem Miller e ainda
darem a Alejandro González Iñarritu um segundo Oscar seguido de Melhor Diretor,
assim igualando-o a lendas do Cinema do porte de John Ford e Joseph
Mankienwickz, algo que também soou como um prêmio político da Academia em
tempos de perseguição do abominável Donald Trump a imigrantes em geral e
mexicanos em particular.
Com isso a Academia coloca na História alguém que
cinicamente ataca os clichês dos maiores sucessos de público – e ainda é o
público que sustenta tudo isso - enquanto se vale deles pra sua própria
finalidade. Ao realizar Birdman, vencedor do Melhor Filme ano passado, Iñarritu
declarou que detestava filmes de super-heróis e foi bastante preconceituoso com
o gênero. No entanto, seu longa metragem deste ano, O Regresso, não é nada mais
nada menos do que uma história de super-herói. Inclusive, praticamente tudo que
ele falou de ruim – a falsa profundidade trazida pelo exagero e o cara bom
vencendo o cara mau como algo filosoficamente desinteressante - são justamente
todos os clichês de que ele entupiu a história real de sobrevivência do Hugh
Glass, que é muito diferente da sua versão.
Repito que não acho necessariamente que essa incoerência afete a qualidade da obra, mas é patente o quanto ele foi cínico na sua
postura, glamourizando os recursos de um estilo para não ter que admitir que se
“rebaixou” ao mesmo. Esse deve ser o
crime do George Miller, que nunca negou que fazia e faz filmes de gênero que,
ao mesmo tempo que são a base de sustentação de Hollywood, também são
rigorosamente desprezados pela Academia.
Quer exemplo maior disso do que o que aconteceu com
Silvester Stallone? Ele tinha ganho prêmios de Ator Coadjuvante por Creed –
Nascido Para Lutar em vários outros lugares. O Globo de Ouro, o Sindicato dos
Atores, todos os premiaram. Menos o Oscar. Será que todos os outros estão
errados e só a Academia está certa? Ou será mais uma prova atestada do
preconceito que eles tem com filmes de gênero e com atores que fizeram carreira
em obras como essas? Lembrando que Ryan Coogler, elogiado diretor de Creed, foi
um dos artistas negros ignorados nas indicações.
No Oscar a Academia é conhecida principalmente por
duas coisas. Seus equívocos e o modo muitas vezes estabanado com que tenta
consertá-los. Deu o prêmio de Melhor Ator a Leonardo DiCaprio por um trabalho
que não é a melhor atuação dele, mas sim por aclamação popular após ele perder
em cinco indicações. E não acho que foi porque queriam escutar o discurso sobre
mudança climática e preservação da natureza. O mesmo pode ser dito ao lendário
Ennio Morricone, que também já tinha perdido cinco vezes, já tendo até ganho o
Oscar pelo Conjunto da Obra, quando ontem, aos 87 anos, levou seu primeiro
Oscar oficial pela trilha sonora de Os Oito Odiados. Para se ter uma noção da
falta de timing da Academia, Morricone ganhou cinco vezes(!) o BAFTA.
Mas outras correções pecaram muito mais do que pela
falta de timing. Foi o caso do discurso de Chris Rock, que deve ter
constrangido muitos afroamericanos fazendo uma longa e bizarra dissertação para
explicar que a Academia não era racista dizendo que ela era racista, além de
menosprezar seus colegas que boicotaram a cerimônia. Deu pra sentir que ele
queria dizer que Will Smith não foi à cerimônia porque a esposa, Jada Pinkett
Smith, mandava nele, mas se segurou. Afinal, era muito mais seguro (e covarde)
debochar de crianças asiáticas. Sim, você não leu errado. Em plena festa do “Oscar da Diversidade” Chris Rock fez
piadas racistas com crianças asiáticas no palco. E tinha gente aplaudindo essa
merda!
No fim, Morgan Freeman, conhecido por sua polêmica
opinião sobre racismo que viralizou na internet anos atrás, e que sempre foi
uma EXCEÇÃO entre os atores negros que conseguem bons papéis em grandes
produções, foi o escolhido para entregar o Oscar de Melhor Filme.
Nitidamente não souberam lidar com a repercussão
negativa da ausência de negros indicados e acharam melhor fazer o gênero Glória
Pires, passando a bola adiante, ou seja, jogando a responsabilidade para toda a
indústria de Cinema de Hollywood que não deu trabalhos dignos de indicações a
esses profissionais negros... como se em todos esses anos o Oscar não tivesse
compactuado e de certa forma até se beneficiado e se feito de surdo para esse
sistema de segregação.
Por falar em Glória Pires o timing da Globo foi
igualmente péssimo. No ano passado o ator escolhido para comentar a transmissão
do prêmio pela emissora foi Lázaro Ramos, um homem negro. Foi quando surgiu
toda uma discussão sobre feminismo em meio à cerimônia, via Patricia Arquette.
Neste ano, porém, apesar do excesso de pautas, é óbvio que o boicote e a
denúncia de racismo prevaleceram na discussão do Oscar. E o que a Globo faz?
Substitui o Lázaro Ramos pela Glória Pires, uma atriz branca!
Mas os constrangimentos não terminaram por aí. A vencedora do Oscar de Melhor Figurino por Mad Max, Jenny Beavan, foi alvo de olhares e comentários por causa do... seu figurino. Beavan decidiu comparecer à cerimônia com um dos looks mais despojados já vistos na premiação, com direito até a uma jaqueta para homenagear o seu filme. Num evento onde várias mulheres já declararam que se sentem diminuídas pelas perguntas idiotas sobre roupas que recebem no tapete vermelho, a figurinista deve ter lavado a alma de muita gente ao dizer com simplicidade que não ligava para o que achassem, pois se sentia confortável daquele jeito.
Uma sábia escolha de palavras que faltou a Sam
Smith. O ganhador do Oscar de Melhor Canção estava tanto na onda do “Oscar da Diversidade” quanto na do “Oscar dos Retardatários” e falou que se
sentia honrado em ser o primeiro homossexual assumido a receber o prêmio. No
que tomou uma bronca no Twitter de Dustin Lance Black, vencedor em 2009 pelo
roteiro de Milk – A Voz da Igualdade, justamente um filme que causou burburinho
por abordar a vida de um ativista dos direitos dos homossexuais.
Esse é o principal problema. A discussão sobre
diversidade deste ano será usada para medidas paliativas ano que vem que vão
fazer todo mundo pensar que está tudo bem e parar de falar desses assuntos que
incomodam. A maior prova disso é que em momento algum do Oscar deste ano eu vi
alguém citar algo que tenha sido feito com relação à luta por equiparação de
salário entre homens e mulheres. O discurso da Patricia Arquette ano passado
surgiu com a mesma velocidade com que foi esquecido sem que nada de efetivo
tenha acontecido... a não ser o fato da própria Arquette ter perdido trabalhos
por sua declaração, como ela revelou em entrevista ao Entertainment Tonight no
tapete vermelho.
Poderia encerrar dizendo que, ao contrário da maior
parte dos brasileiros, não torci para O Menino e Mundo levar o Oscar de Melhor
Longa Metragem de Animação e sim para As Memórias de Marnie do Studio Ghibli já
que, diferente do Chris Rock, eu acho que asiáticos estão muito além do clichê.
Em vez disso vou reproduzir um trecho da carta da
Anohni, cuja canção indicada, Manta Ray, está no documentário Corrida Contra a
Extinção:
"Eu
sou a única artista transexual que já foi indicada para um Oscar, e por isso eu
agradeço aos artistas que me indicaram (houve uma compositora trans indicada nos
anos 70, Angela Morley, que fez um grande trabalho nos bastidores) [...] Eu sei
que não fui excluída diretamente por ser transgênero. Não fui convidada porque
sou relativamente desconhecida nos Estados Unidos, canto uma canção sobre
ecocício e isso pode atrapalhar a venda de espaços comerciais e, sei, além
disso, que tenho o direito automático de não ser convidada. Mas é impossível
ignorar a verdade mais profunda. Como o aquecimento global, não se trata de um
fato isolado, mas de uma série de eventos que se produzem ao longo dos anos
para criar um sistema com a intenção expressa de me minar primeiro como menina
e mais tarde como mulher trans andrógina. É um sistema de opressão social e
diminuição dos espaços de pessoas trans que tem sido empregada pelo capitalismo
nos EUA para esmagar nossos sonhos e nosso espírito coletivo.
[...]
A verdade é que eu não estava preparada para o estrelato e para ser diluída
para sua diversão. Como uma artista transexual, eu sempre ocupei um lugar fora
do mainstream. Tenho pago com prazer um preço por falar a minha verdade em face
da aversão e idiotice. Eles vão tentar nos convencer de que eles têm nossos
melhores interesses e sentimentos ao agitar bandeiras de identidades políticas
e questões morais falsas. Mas não se esqueça de que muitas dessas celebridades
são os troféus de corporações bilionárias cuja única intenção é manipulá-lo a
dar-lhes o seu consentimento e o último de seu dinheiro. Elas foram pagas para
fazer um pouco de sapateado para ocupar você enquanto Roma arde. Esses são os
últimos dias de uma grande fraude americana patrocinada pela Exxon Mobil,
Walmart, Amazon, Google e Philip Morris. Os Estados Unidos é um país que já não
é contido por fronteiras físicas só quer mais poder e controle. Enquanto a mim,
eu quero maximizar a minha utilidade e defender a preservação da biodiversidade
e da busca da decência humana dentro da minha esfera de influência".
P.S. Glória Pires acabou de lançar em seu site uma linha
de camisas estampadas com os memes de suas frases no Oscar. Isso é que é ter
noção de timing.
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